Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica

Centro Tecnológico - Universidade Federal de Santa Catarina

Novos modelos de produção e a formação do engenheiro: uma abordagem CTS


Irlan von Linsingen – linsingen@emc.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina, Depto. de Engª Mecânica
Campus Universitário – Trindade - CP. 476
CEP: 88040-900 – Florianópolis – S.C.
Walter Antonio Bazzo –
wbazzo@emc.ufsc.br


Resumo: É cada vez mais difundida, e aparentemente aceita, a idéia da emergência de um novo paradigma produtivo, com o fim do fordismo e gradual estabelecimento de uma economia pós-industrial, cuja característica mais marcante seria a flexibilidade que se refere aos produtos, mercados, tecnologias e trabalho.
Uma das conseqüências dessa transformação seria o aumento da mobilidade profissional, e a exigência de competências até agora não consideradas na formação técnica, com redução do predomínio da visão tecnicista.
Essa mudança paradigmática não poderia prescindir, imagina-se, de uma nova formação dos engenheiros numa perspectiva interdisciplinar, que os torne capazes de integrar os aspectos técnicos e sócio-organizacionais.
Por outro lado, cresce o movimento que considera a ciência-tecnologia como construção social e que reivindica uma formação tecnológica com forte comprometimento social.
Neste artigo discutimos algumas das características desses novos modelos de produção e os novos atributos que seriam ‘necessários’ para os engenheiros, empregando referenciais CTS.

Palavras-chave: Formação do Engenheiro, Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS), Modelos de Produção, Análise sociotécnica

1. INTRODUÇÃO

Muitos autores e pesquisadores tem se manifestado acerca das transformações do processo produtivo e da temática relacionada e essas transformações, como  emergência de um novo paradigma produtivo e de novos conceitos de produção, em substituição ao velho paradigma das sociedades industriais.

Temas como a reorganização do trabalho, formas diretas de envolvimento dos trabalhadores, novas competências e novas exigências de ensino-formação tem sido foco de atenções tanto empresariais, quanto sociais, e também da sociologia, da educação e da engenharia.

Na perspectiva da análise sociotécnica, as novas tecnologias engendram novos modos de produção sendo ao mesmo tempo produtos desses, do mesmo modo que a formação de competências profissionais para as novas tecnologias (bem como para a manutenção das tecnologias sobreviventes) não poderiam estar dissociadas da constituição da própria tecnologia. Esta idéia de simultaneidade implica em admitir uma perspectiva não determinista da relação entre tecnologia e sociedade, de tal modo que a evolução e expansão das sociedades tecnológicas[1] seria protagonizada não por um único ator (individual ou coletivo, humanos e não-humanos), mas por diversos atores que se integrariam em redes (Benakouche, 1999).

Por outro lado, no âmbito das políticas tecnológicas públicas, a ação de engenheiros que produz interferências ambientais e sociais que envolvem diversos atores, resulta normalmente de argumentos baseados em conhecimento técnico não compartilhado, o que favorece a atitude tecnocrática, seja  individual, de especialistas de uma mesma área técnica, ou de reunião de diferentes especialistas.

Certamente, uma tal temática deveria fazer parte, explicitamente, do conjunto das preocupações de todos os envolvidos com a formação tecnológica e, particularmente, com a formação em engenharia, dada a inserção e importância desses profissionais nas sociedades tecnológicas.

Se admitirmos a emergência da sociedade em rede, com tendências globalizantes, na qual os conhecimentos técnicos especializados, sendo a parte e não o todo, não são suficientes na determinação da evolução tecnológica, e nem mesmo de artefatos particulares – posto que suas existências estão ligadas à aceitação de outros atores, de que competências estaríamos de fato necessitando? Qual seria o lugar do engenheiro especialista neste cenário? E se pensarmos em especialidades como necessidades do processo de produção coletiva, em que condições ocorreria a interação entre especialistas, e entre estes e os não especialistas técnicos?

Em um tal cenário, no qual a engenharia exerce um papel importante na tecnologia, cabe aprofundar aspectos da formação de engenheiros, e remeter os atributos de formação tornados  necessidades do novo paradigma à analise crítica.

Como admitimos que as necessidades de qualificação de engenheiros e tecnólogos não estão dissociadas da lógica que sustenta a discussão em torno da temática da mudança de paradigma produtivo, torna-se pertinente discutir algumas das questões que animam o debate sociológico e econômico acerca dos modelos de produção existentes, e das qualificações que seriam necessárias em cada um deles.

Do mesmo modo, por coerência da visão de sociedade em rede, na qual se inscrevem esses modelos, e pela admissão de indissociabilidade entre ciência, tecnologia e sociedade subjacente àquela, entendemos como necessário introduzir elementos de reflexão sobre a formação voltada para a cidadania.

2. NOVOS MODELOS DE PRODUÇÃO E EXIGÊNCIAS DE QUALIFICAÇÃO

É cada vez mais difundida a idéia de que as empresas, para enfrentarem adequadamente a competitividade atual, devem adotar o modelo lean production, desenvolvido no Japão pela Toyota. Durante os anos 90, a difusão desse modelo tornou-se quase icônica, chegando a ser chamado de modelo do futuro. Neste sentido, algumas experiências que tinham sido realizadas no seio do modelo sociotécnico nos países centrais (modelo antropocêntrico de produção), em prol da humanização do trabalho e da democracia industrial acabaram cedendo às pressões por mudanças baseadas no modelo toyotista.

No centro da visão tecnocêntrica atual, segundo Ilona Kovács (Kovács e Castillo, 1998), a lean production teria alcançado o estatuto de melhor modelo, apresentando características semelhantes ao que no passado representou a ascensão do modelo fordista/taylorista.

Dentre os princípios da lean production mais diretamente relacionados com a formação destacam-se o trabalho em equipe e a responsabilidade ao nível de execução pela melhoria da qualidade de produtos, permitindo autonomia no trabalho e aquisição de novas qualificações; trabalhadores flexíveis, polivalentes e com disponibilidade ilimitada às exigências da empresa; a gestão pela cultura da empresa, orientação para a cooperação, confiança e consenso (Op. cit., pp. 14-15).

Cabe lembrar que, nesse modelo, prevalecem as atividades parcelares e o trabalho em grupo é encarado como instrumento de racionalização e não como meio de integração social e humanização do trabalho.

Empresas ocidentais, visando obterem as mesmas vantagens competitivas que empresas japonesas (produtividade, flexibilidade, qualidade, redução de custos e melhoramentos constantes), promovem mudanças baseadas nos princípios de just-in-time e qualidade total, adotando o modelo lean production como ‘paradigma pós-taylorista e um novo e melhor modelo universalmente aplicável a serviço da racionalização.’ (Op. cit., p. 15).

Segundo esse modo de ver, outros modelos como o sociotécnico ou antropocêntrico acabam por serem considerados como de custo muito elevado e, portanto, pouco aplicáveis ou inviáveis.

Enquanto que os adeptos do modelo de lean production vêem nele uma melhoria da competitividade através de uma racionalização contínua, seus críticos sustentam que este modelo não seria outra coisa senão um taylorismo interiorizado, implicando excesso de trabalho, eliminação de movimentos e tempos inúteis, padronização de processos e eliminação dos aspectos informais. ‘Tratando-se de uma racionalização autogerida, poderá falar-se de uma auto-exploração’ (Op. cit., p.16).

Os sistemas antropocêntricos de produção, de concepção européia, fundamentam-se na utilização de recursos humanos qualificados e nas tecnologias flexíveis adaptadas a quadros organizacionais descentralizados e participativos.

Dentre as características gerais desse modelo, algumas das que possuem relação mais próxima com atributos de formação seriam a inovação tecnológica baseada em objetivos sociais, ecológicos e organizacionais; princípios organizacionais voltados para a autonomia, criatividade, descentralização, participação e cooperação; e tecnologias adaptadas às necessidades dos usuários, da organização descentralizada e da gestão participativa (Op. cit.).

Há de se notar que, apesar da presença significativa de princípios antropocêntricos no modelo japonês, este é considerado como sendo diferente do modelo antropocêntrico em vários aspectos. Por exemplo, no que diz respeito aos objetivos, ambos os modelos buscam o aumento da produtividade, da qualidade e da flexibilidade de produtos. Mas o modelo antropocêntrico acrescenta o aumento da qualidade de vida  no trabalho e a utilidade social e ecológica dos produtos. Em relação à tecnologia, o afastamento é maior. Para a lean production, as pessoas devem se subordinar ao sistema técnico adotado, enquanto para o modelo antropocêntrico a tecnologia deve ser especificamente adaptada às necessidades humanas e da organização.

Segundo Juan José Castillo, esta forma de pensar em termos de ruptura, implica supor a existência de um modelo dominante (ou que tenderá a ser no futuro), inibindo a visão de “realidades organizativas (eventualmente) paralelas, simultâneas, e a extensão de formas organizativas ‘em manchas de leopardo’, inclusive numa mesma empresa.” (Kovács e Castillo, p.7, 1998).

Considerando as tendências globalizantes de redistribuição e reestruturação da produção, nada indica (pelo contrário) que haja prevalência de um único e melhor modelo a ser seguido, ou mesmo a coexistência de dois possíveis modelos, mas sim de vários modelos, dependentes de condições particulares do processo produtivo, e de seu entorno sociocultural e socioeconômico, tanto nacionais quanto regionais, locais e mesmo dentro das organizações.

Ao se considerar a diversidade sociocultural do mundo globalizado, admite-se  a não centralidade de um modelo único e linear de formação e qualificação para o trabalho.

3. ENSINO-FORMAÇÃO SEGUNDO 'NECESSIDADES' POSTAS NOS MODELOS DE PRODUÇÃO

Segundo as características dos modelos tecnocêntrico e antropocêntrico de produção, os sistemas de formação precisam ser adaptados de modo a atender as exigências de qualificação para o cumprimento de metas desses modelos, suas especificidades e implementação e afirmação de um deles como o melhor modelo.

De maneira geral, no que concerne aos atributos comuns aos dois modelos, para a formação de engenheiros e tecnólogos se estaria reivindicando uma formação mais ampla, que possa contemplar aspectos tão diversificados quanto a super-especialização centrada em alguns setores e regiões; funções qualificadas e altamente qualificadas em matéria de informática, marketing, gestão, e engenharia de produção; conhecimento técnico mais geral e não limitado a uma profissão; capacidade de comunicação, de cooperação, de trabalhar em equipe em função de uma maior interdependência de funções e tarefas; capacidade de aprendizagem contínua.

Para Silva (1999), como de modo geral para os que compartilham o paradigma produtivo tecnocêntrico, fazem parte do perfil ideal do engenheiro que as empresas querem hoje, entre outros, o conhecimento técnico específico, sólido embasamento nas ciências físicas e matemáticas, capacidade de comunicação oral e escrita, habilidade de relacionamento interpessoal, espírito de liderança, conhecimento de gestão, capacidade de auto-aprendizagem, inventividade e criatividade, e compromisso com a sua profissão e com a sociedade.

Alguns aspectos das qualidades que o engenheiro deveria possuir, atribuídas como necessidades do modelo tecnocêntrico, seriam igualmente importantes para os objetivos do modelo antropocêntrico. Entretanto, a orientação formativa seria essencialmente oposta, ou seja, essas qualidades seriam postas a serviço do ser humano, ao contrário do tecnocentrismo, para o qual os atributos não técnicos seriam postos a serviço de uma racionalidade técnica voltada para o aumento da produtividade, competitividade e defesa do sistema empresarial dominante.

Em resumo, embora ambos os modelos operem com vistas a aumentar a produtividade e competitividade, a diferença da estratégia antropocêntrica estaria na obtenção dessas características associada à melhoria da qualidade de vida dos participantes do processo produtivo.

Essas diferenças de visão repercutem no sistema de ensino-formação, na medida em que as posturas didático-pedagógicas devem ser orientadas para o atendimento pleno das ‘necessidades’ assim estruturadas, embora não se tenha muito controle sobre seus resultados.

4. SOBRE AS ATRIBUIÇÕES PROPOSTAS NOS MODELOS DE PRODUÇÃO

O modo como o assunto vem sendo tratado tem dificultado a introdução de abordagens que permitam considerar o ensino-formação, e as qualificações, numa perspectiva que privilegie um tratamento não determinista (tanto tecnológico quanto social) para o caminhar das sociedades humanas, e de abordagens curriculares não tecnocráticas.

Os atributos desejáveis apontados nos modelos de produção possuem, na perspectiva sociotécnica, uma dimensão que extrapola os limites de sua inserção no sistema produtivo isoladamente, ou seja, não se trata apenas de considerar o que é melhor para a produção, senão de admitir que produção, produto, trabalhadores e conhecimento são elementos constituintes de uma matriz social comum e, desse modo, não se podem separar e nem serem tratados apenas no âmbito de determinados modelos de produção.

A defesa de uma formação voltada também para a participação e criatividade, parece continuar ocorrendo ainda na esfera de ação das empresas, de seus interesses exclusivos e em contextos particulares, não impedindo a manutenção e reprodução de atitudes de defesa de um tecnicismo e nem de atitudes deterministas tecnológicas, pelo simples fato de que a mudança de atitude esperada dos atores humanos pode não estar associada a um compromisso com a transformação íntima dos mesmos, a ponto de provocar rupturas internas e conseqüentes re-construções capazes de produzir atitudes transformadoras, com implicações inclusive sobre os próprios pressupostos que determinam o paradigma dominante.

Não se pode deixar de considerar que esses novos atributos não ficam restritos à superfície das relações sociais no âmbito da produção, mas tendem, como acontece com o conhecimento técnico parcelar – e, de modo geral, com todo o conhecimento –, a serem assumidos intimamente como determinantes do modo de sentir, pensar e agir. Neste sentido mais que uma formação que equilibre aspectos técnicos e humanísticos, ela deve ser acompanhada de reflexão crítica para a ação transformadora.

Se considerássemos, numa perspectiva dicotômica, a emergência do modelo de lean production como único e melhor modelo em substituição ao modelo fordista/taylorista, e a flexibilização como único modo de produção capaz de dar conta da diversidade que se propõe alcançar, teríamos que admitir como necessárias à formação do engenheiro, além do conhecimento técnico, aspectos relacionados a atributos não técnicos voltados exclusivamente para o atendimento das ‘necessidades’ dos sistemas produtivos, numa perspectiva tecnocêntrica.

De qualquer modo, as considerações que tem sido realizadas por pesquisadores de qualquer tendência parecem referir-se, em última análise, a um sistema de ensino-formação que privilegia a visão de cidadania como instrumento de mercado, e não o contrário. Pedro Demo aponta bem essa questão, quando se refere à precarização crescente das relações de trabalho, indicando a necessidade de se pensar a competência humana com base na cidadania, para humanizar mercado e conhecimento, buscando uma sociedade mais tolerável (1999, p.29).

5. REPERCUSSÕES SOCIAIS DA FORMAÇÃO TÉCNICA DOS ENGENHEIROS

Muitos são os exemplos de ações desastrosas, ou socialmente indesejadas, protagonizadas por engenheiros formados em bases ‘estritamente técnicas’, sob o signo da neutralidade e autonomia da ciência e da tecnologia.

A decisão da construção do reator nuclear Superphenix, pelo governo francês em 1970, foi conseqüência de pressões engendradas por engenheiros da CEA (Comissão de Energia Atômica) e, possivelmente também por empresários do setor, a partir de uma argumentação baseada em aspectos ‘estritamente’ técnicos. O argumento usado para convencer os políticos, foi de que a aposta tecnológica do desenvolvimento de reatores de nêutrons rápidos era a melhor solução para resolver, de maneira durável, o problema da independência energética do país. A usina, ativada em 1985, logo se defrontou com problemas tecnológicos sérios e oposição geral da opinião pública  francesa e dos países vizinhos, tendo sido finalmente desativada em 1998 (Sacadura, 1999).

Um outro exemplo, com ocorrência em vários países, diz respeito à tomada de decisão pelos políticos, ‘por recomendação – talvez fosse mais certo falar em pressão – dos representantes de lobby industrial’ (Op. cit., p.21), da implementação de transporte rodoviário de grande distância em detrimento, e praticamente abandono, das redes de transporte ferroviário. É importante salientar que as decisões políticas foram, em sua grande maioria, apoiadas em argumentações ‘técnicas’ preparadas e defendidas por engenheiros. Hoje, as soluções para os problemas generalizados gerados por essa opção, e que não se resumem a soluções triviais como aumento e melhoria da malha rodoviária, esbarra em questões sociais e econômicas de tal magnitude, que qualquer escolha que se faça para o setor de transportes não deverá ser realizada sem a participação dos atores envolvidos, sob pena de serem gerados problemas sociais graves.

Estes exemplos, e inúmeros outros encontrados na literatura (Bijker, Pacey, Winner, Munford), indicam que a engenharia é uma atividade essencialmente social, e que as referências técnicas, embora relevantes, constituem apenas elementos constituintes desse todo que representa a tecnologia. Isto implica considerar que não é possível atribuir o estatuto de neutralidade à técnica nem à tecnologia (Garcia et alii, 1996) e, fundamentalmente, a este ser social que é o engenheiro.

Isto implica admitir que qualquer argumentação técnica é, intrinsecamente, uma argumentação política, e qualquer solução técnica, além de ser essencialmente resultado de interesses particulares, não possui existência independente da sua apropriação sociocultural.

Nesse sentido, dado o caráter eminentemente social da técnica, como querer tratá-la, e à formação dos engenheiros, como atividades independentes? Como continuar sustentando que o estatuto da autoridade do conhecimento técnico é suficiente para a tomada de decisão sobre assuntos de interesse público? E como é possível continuar descontextualizando e fragmentando o ensino das técnicas?

6. O QUE A FORMAÇÃO TÉCNICA NÃO COSTUMA CONSIDERAR

Não se pode desconsiderar a grande influência, e até mesmo o fascínio que o modelo tecnocêntrico e a lean production vem exercendo, mesmo que implicitamente, sobre a estruturação curricular e didático-pedagógica nas escolas de engenharia. Na raiz dessa influência e direcionamento institucional estaria, além das pressões, interesses externos diversos e comportamentos pessoais explícitos, a aceitação implícita de pressupostos epistemológicos e ideológicos que embalam a prática pedagógica nas escolas de engenharia desde sua formação na primeira revolução industrial.

O predomínio da visão tecnicista no que se refere ao trato da organização tanto da empresa quanto da coisa pública, no âmbito das novas tecnologias, admitida a sua influência na tomada de decisão, deve-se principalmente ao tipo de educação a que foram submetidos os especialistas que concebem os sistemas técnicos avançados, posto que as suas formações não contemplam o lado social ou sociorganizador das suas tarefas, dificultando ou incapacitando-os a considerarem formalmente os aspectos sociais na elaboração de sistemas técnicos. Essa deficiência formativa, segundo Werner Wobbe (apud Kovács e Castillo, 1998), é decorrente da ‘consciência predominantemente tecnocrática dos estabelecimentos tradicionais que são as universidades nas disciplinas técnicas e na informática’ (p.90).

Desde a década de 1960, a idéia de tecnologia associada a bem-estar social vem sendo questionada e confrontada com alguns de seus efeitos catastróficos. Uma das conseqüências do processo de resistência social a muitas das realizações da ciência-tecnologia foi o estabelecimento da crise da autoridade do conhecimento técnico, colocada em xeque pelos diversos segmentos sociais preocupados com as questões sociais e ambientais de sustentação da vida.

Esse questionamento levou a uma crise interna das instituições que formam técnicos, posto que, face às controvérsias sociais decorrentes do trabalho dos engenheiros e tecnólogos, colocou-se na berlinda os pressupostos que até então orientavam, mesmo que implicitamente, a prática pedagógica nas instituições de ensino superior, que estavam (e ainda estão) centradas em idéias de autonomia do conhecimento técnico e neutralidade da ciência-tecnologia, embora os fatos sociais estejam a contestar tais pressupostos.

É com esta visão de engenharia como produção social que postulamos a necessidade de formação integral de seus agentes, técnica, social e culturalmente referenciada. Trata-se de admitir que o engenheiro de hoje não possui mais compromisso exclusivo com um modo tecnocêntrico de ver o seu trabalho e nem tecnocrático de agir. Mais que isso, está diante de novos sistemas que parecem brandir por responsabilidade e interação social, possível de ser construída por meio de educação tecnológica, e não apenas por formação técnica (esta considerada como neutra).

Nessa nova perspectiva, onde se encaixa a práxis pedagógica que privilegia a ‘transmissão’ de conhecimento de um detentor para um receptor passivo, o conhecimento técnico parcelar tacitamente descontextualizado e despersonalizado, a adoção de métodos punitivos de avaliação, a grade curricular rígida e linear?

7. EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS

A perspectiva multimodelos de produção enceta diferentes abordagens para a análise dos sistemas de educação tecnológica. Na perspectiva dicotômica, pensa-se em ensino de uma maneira limitadora, na medida em que a formação estaria sendo realizada para atendimento exclusivo de ‘necessidades’ que se limitam à adoção de um determinado modelo de produção (ou variações desse), num universo mais amplo e muito menos ordenado.

Desde que as instituições de ensino superior (principalmente as públicas) devem, por respeito aos objetivos institucionais e sociais, orientar a formação dos engenheiros para amplos setores da sociedade, não podendo limitar o campo de atuação desses profissionais, embora as especialidades já o façam implicitamente, há a conseqüente necessidade de uma formação que privilegie aspectos multifacetados do conhecimento especializado, e também aspectos de formação geral.

A formação geral do engenheiro, a que nos referimos, não pode ficar restrita ou atrelada a uma orientação específica, que limita o mundo do trabalho à emergência de um modelo ‘ideal’ de produção. Essa formação geral (de orientação holística) deve possuir o caráter ao mesmo tempo conservador e transformador do sentir, pensar e agir humanos, centrados numa visão de sociedade interagente e dinâmica, que se globaliza sem perda de identidade, e que cada vez mais opera de modo interconectado, ou integrado em rede.

Neste tipo de visão, a especialidade deve ser tratada como parte de uma totalidade, mas esta não pode ser expropriada daquela, ou seja, o especialista deve ser formado para tratar o objeto de sua especialidade de forma contextualizada e tornar-se capaz de ver criticamente a ambos, especialidade e objeto de seu trabalho especialista. Isto é possível de ser realizado por meio de uma formação que privilegie o tratamento interdisciplinar da especialidade e, simultaneamente (durante o processo de transição), uma formação disciplinar com conteúdos de humanidades, como a integrante dos projetos educacionais do movimento CTS (Bazzo, 1998).

No campo das políticas tecnológicas públicas, quando a ação de engenheiros resulta em alterações ambientais em determinada localidade, envolvendo portanto, diversos atores (humanos e não humanos), normalmente o é através de uma argumentação que utiliza conhecimento técnico que leva em conta fatores externos ao paradigma com o qual trabalham.

Como fruto de atitudes ‘politicamente corretas’ ou não, tem-se adotado uma tecnocracia interdisciplinar, baseada na reunião de diversos especialistas de diferentes áreas disciplinares, que podem determinar com mais poder e sem negociação, a política a ser seguida (Fourez,1995).

O que parece ser mais problemático é que a idéia de se recorrer a equipes interdisciplinares está ligada à idéia de ‘isenção’, ou neutralidade, escondendo ainda mais o fato de que o resultado apresentado é sempre fruto de uma negociação interna de pontos de vistas particulares, da qual os outros atores envolvidos não podem participar.

Nesta perspectiva, Fourez (1997) trabalha, em nível de formação secundária, no que denominou ‘Alfabetização científica e tecnológica’, com as ilhas interdisciplinares de racionalidade onde se busca, por meio da reunião de especialistas de diversas áreas com os educandos, propiciar um ambiente participativo e cooperativo do processo educacional, no qual a formação seria fruto da negociação de conhecimentos entre os participantes do processo. Entre os resultados almejados por essa modalidade de educação, estaria aquilo que Fourez identifica como formação voltada para a tomada de decisão consciente, ou ‘transmissão de poder social’ (1995, pp. 220-223), por parte dos não especialistas, sobre questões científicas e tecnológicas que de alguma maneira interferem no cotidiano individual ou coletivo.

Neste sentido, cabe reestruturar a compreensão das próprias especialidades por meio de uma formação que privilegie o reconhecimento da especialidade técnica como construção social e histórica, possibilitando aos especialistas possuírem eles próprios um poder social ética e moralmente referenciado.

A aceitação da existência de vários modelos de produção, ao contrário do que se tem postulado, indica que os atributos para formação de engenheiros e tecnólogos vai além das exigências de formação que estão sendo propostas com ênfase por vários autores que defendem a emergência de um novo e melhor paradigma produtivo.

Se a isso acrescermos a perspectiva de uma sociedade voltada para o mercado como instrumento de cidadania, indica também que os aspectos relacionados com a formação em engenharia, particularmente as questões curriculares, não podem ser tratados de forma linear e restrita apenas aos aspectos técnicos e científicos, considerados neste sentido como neutros.

Uma abordagem que possibilita estabelecer uma convergência das exigências de formação para os sistemas de produção (no sentido de que pode unificar os atributos não técnicos vistos de forma disciplinar), com aspectos humanísticos implicados na grande rede de atores que constituem as sociedades, estaria sendo formada a partir das interações entre ciência, tecnologia e sociedade. Temas como interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e transversalidade no ensino-formação técnico começam a ser tratados como possibilidades plausíveis para um processo de transformação socialmente aceitável.

7.1 Educar para inovar e participar

A definição clássica dá conta de que a inovação constitui, em princípio, a criação ou adaptação de novos conhecimentos e sua aplicação a um processo produtivo, com repercussão e aceitação no mercado. Entretanto, esta definição não responde onde esses conhecimentos vão ser criados ou demandados ao longo do processo inovador.

Um pressuposto histórico estabeleceu que uma base científica forte seria suficiente para estimular o processo inovador, e que era suficiente formar e preparar pesquisadores científicos para conseguir a injeção de conhecimento de interesse no âmbito econômico.

Atualmente, de acordo com Cerezo e Valenti (1999), admite-se a imprecisão desse argumento, uma vez que muitas inovações surgem nas empresas, em centros tecnológicos, a partir de atores diferenciados e não especializados, como fruto de demandas dos consumidores e interesses dos próprios trabalhadores.

Esta constatação aponta para uma nova compreensão de criatividade, como fruto de transformações históricas, passando de uma criatividade individual e espontânea que foi característica do período da primeira revolução industrial (embora transferida por canais sociais), já sofrendo um processo de aglutinação durante a segunda revolução industrial, para uma criatividade de tipo coletivo a partir da segunda guerra mundial, a que os autores citados denominam de ‘criatividade organizada’.

Um dos aspectos marcantes da criatividade organizada é o caráter agregador das capacidades e esforços individuais em prol de uma maior implementação dos seus resultados, uma vez que os problemas que se propõem atualmente estão crescendo em complexidade. ‘Assistimos, por conseguinte, à passagem de um processo inventivo a um processo inovador, quer dizer, à passagem da invenção como expressão individual da criatividade para a inovação como processo coletivo de criatividade’ (Op. cit.)

Lamentavelmente, ainda hoje no Brasil, o ensino de engenharia é fortemente praticado em bases individualistas e descuida da criatividade individual, mecanizando inclusive o processo de aprendizagem através da associação memorística.

A criatividade e a versatilidade na formação de especialistas é ademais necessária na sociedade contemporânea, pois esta requer cada vez mais “especialistas temporais”, dado o vertiginoso ritmo da mudança tecnológica atual e os breves períodos de tempo nos quais hoje parecem caducar muitos conteúdos de conhecimento.

A super-especialização dos estudantes poderia ser encarada neste sentido como geradora de problemas sociais, através do chamado ‘efeito túnel’ (Op. cit.) que tende a cegar os profissionais para qualquer consideração que ultrapasse o âmbito de suas competências técnicas.

7.2 A questão ética

Parece não haver dúvidas quanto à necessidade de um código de ética que norteie a atividade da engenharia. Este código está presente nos manuais e é diuturnamente lembrado nos discursos das formaturas. Entretanto, tal código de ética tem sido apenas reproduzido ao longo dos anos, ignorando que transformações tecnológicas e de entendimento de sua significação, são assentadas em novas posturas éticas e valores compartilhados. Isto significa que os códigos empregados como referencias hoje, estariam, em boa medida, afastados dos novos valores incorporados ao processo de evolução tecnológica e às novas relações sociais que se estabeleceram com o advento de novas tecnologias.

Na perspectiva da interação entre ciência, tecnologia e sociedade, tratar-se-ia de tornar os engenheiros profissionais conscientes das incertezas valorativas que afetam os elementos de juízo que utilizam, na Big Science contemporânea, assim como das graves e importantes conseqüências sociais e ambientais de sua atividade.

Há de se considerar nessa iniciativa de elaboração de um código de ética renovável, que os pressupostos que orientam a sua definição podem estar dominados por visões simplistas de tecnologia, como a de corte artefatual ou intelectualista[2] que, ao defender a autonomia da tecnologia, tende igualmente a reduzir ao conhecimento cada vez mais especializado a solução de novos problemas de valores no mundo da engenharia, que é dominado pelo ideal de eficiência interna.

          ‘A ética da engenharia, ao explorar as linhas diretrizes da ética profissional, desenvolve o único conceito moderno de responsabilidade: a idéia de que é preciso levar em conta as conseqüências a longo prazo, o risco, e os impactos ambientais amplos e humanos profundos’. (Garcia et alii, 1996, p.219)

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que, apesar da existência de uma orientação tecnocêntrica para os modelos de produção e para os sistemas de ensino-formação, a consideração de aspectos humanísticos começa a se tornar considerável na estruturação dos sistemas de produção, sugerindo que algumas características socioculturais sejam tratadas de modo mais explícito nas empresas e instituições de formação profissional.

Entretanto, essas considerações parecem ainda longe de constituírem uma reorientação para modelos de sociedade que privilegiem os aspectos humanísticos, particularmente a visão de tecnologia como processo social e, além disso, como processo com características culturais particulares.

No que diz respeito à formação do engenheiro, parece claro que não se pode deixar de considerar estes aspectos, pelo fato de que certos atributos ‘desejáveis’, que eventualmente podem vir a fazer parte de diretrizes curriculares serão, como historicamente sempre foram, decorrentes de orientações econômicas e tecnocêntricas. E mesmo que não o façam, estarão implicitamente postos nas estruturações didáticas que os professores realizam em suas disciplinas, e que passam a constituir modelos de conhecimento e comportamento a serem adotados.

Imaginamos o engenheiro, enquanto sujeito social, como de modo geral todos os indivíduos, em interação permanente com o seu entorno, ou seja, como ser essencialmente relacional, o que se torna explícito principalmente neste momento histórico, como pode ser visto nas muitas publicações que anunciam a emergência de um novo período paradigmático. Isto parece indicar que os sistemas tecnológicos não são apenas resultados da ação humana, mas a própria ação do sujeito, o que significa transformar o sujeito que assiste passivamente o resultado da ação de outrem, o absorve e o reproduz, em agente de transformação, sendo, portanto, socialmente responsável. Nessas condições, ao sujeito social não pode mais ser atribuída a inculpabilidade pela ignorância (não está embutida nesta afirmação qualquer alusão à ações punitivas, mas um alerta).

As reflexões realizadas neste artigo, pretendem apenas sugerir a necessidade do aprofundamento das questões que dizem respeito à formação em engenharia e educação tecnológica, assentadas numa epistemologia da tecnologia e na análise sociotécnica. Trata-se de tentar contribuir para a ampliação da visão de currículo que tem animado os movimentos atuais em prol de uma reformulação curricular, que privilegie as interações entre as engenharias e seu ambiente sociocultural.

A discussão sobre o ensino de engenharia atual implica a discussão sobre futuros possíveis e, também, sobre futuros desejáveis, não só para as engenharias, mas para as sociedades.

REFERÊNCIAS

BAZZO, Walter Antonio. Ciência, Tecnologia e Sociedade : e o contexto da educação tecnológica. Florianópolis : Ed. da UFSC, 1998.

BENAKOUCHE, Tâmara. Novas Tecnologias e Educação na Análise Sociotécnica. Trabalho apresentado no Workshop Internacional “Globalização, Educação e Trabalho”. Florianópolis, SC, outubro de 1999.

CEREZO, José A. López; VALENTI, Pablo. Educación Tecnológica en el siglo XXI. Publicado em Polivalencia, Nº 8 : Universidad Politécnica de Valencia, 1999.

DEMO, Pedro. Profissional do futuro. In: von Linsingen, Irlan, et al. Formação do Engenheiro : Desafios da atuação docente, tendências curriculares, questões contemporâneas da educação tecnológica. Florianópolis : Ed. da UFSC, 1999. (pp. 29-50)

FOUREZ, Gerard. Alfabetización científica y tecnológica. Acerca de las finalidades de la enseñanza de las ciencias. Buenos Aires : Ediciones Colihue, 1997.

          . A construção das ciências. Introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo : Ed. da UNESP, 1995.

GARCIA, Marta I.G.; CEREZO, José A.L.; LÓPEZ, José L.L. Ciência, Tecnologia y Sociedad: una introducción al estudio social de la ciencia y la tecnología. Madrid : Tecnos, 1996.

KOVÁCS, Ilona; CASTILLO, Juan José. Novos Modelos de Produção. Trabalho e pessoas. Oeiras : Celta Editora, 1998.

SACADURA, Jean-François. A formação dos engenheiros no limiar do terceiro milênio. In: von Linsingen, Irlan, et alii. Formação do Engenheiro : Desafios da atuação docente, tendências curriculares, questões contemporâneas da educação tecnológica. Florianópolis : Ed. da UFSC, 1999. (pp. 13-27).

SILVA, Décio da. O engenheiro que as empresas querem hoje. In: von Linsingen, Irlan, et alii. Formação do Engenheiro : Desafios da atuação docente, tendências curriculares, questões contemporâneas da educação tecnológica. Florianópolis : Ed. da UFSC, 1999. (pp. 77-88).

 


[1] O termo sociedade tecnológica é usado aqui no sentido de unidade ou inseparabilidade entre tecnologia e sociedade, embora não deixe de reconhecer a existência de sociedades não tecnológicas ou pré-tecnológicas.

[2] Referimo-nos aqui às noções de tecnologia empregadas por Garcia et alii (1996).